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A sensibilidade não celíaca ao glúten (SNCG) é, ainda, dados os parcos conhecimentos sobre a mesma, um assunto polémico. O Dr. Stefano Guandalini do Centro de Doença Celíaca da Universidade de Chicago escreveu um artigo no último número da revista desta instituição em que sumariza os mais recentes desenvolvimentos no estudo da SNCG e no qual propõe o uso de uma nova designação: Síndrome de Intolerância ao Trigo. Um artigo muito interessante e esclarecedor, dentro do que se conhece sobre a SNCG.
Também de Novembro deste ano, podem encontrar aqui um artigo intitulado Gluten Sensitivity do investigador Carlo Catassi, publicado na revista Annals of Nutrition and Metabolism. Nele, faz um resumo alargado do que se sabe até agora sobre a SNCG, defendendo que um algoritmo de diagnóstico pode ser uma ferramenta útil para detectar casos de pacientes com esta condição.
"A Sensibilidade Não
Celíaca ao Glúten é, na realidade, o Síndrome de Intolerância ao Trigo
Por Dr. Stefano Guandalini
Revista IMPACT de Novembro 2015
Uma publicação do CENTRO DE DOENÇA CELÍACA DA UNIVERSIDADE
DE CHICAGO
Nos últimos anos tem havido um ressurgimento do interesse na
"sensibilidade não celíaca ao glúten" (SNCG), descrita pela primeira
vez em 1978 . Este conceito aplica-se a pacientes que não satisfazem os
critérios para a doença celíaca (DC) ou alergia ao trigo, mas que relatam uma
série de sintomas intestinais e / ou extra-intestinais após o consumo de
alimentos que contêm glúten. Esses pacientes, por definição, não possuem nem os
anticorpos nem a enteropatia característica da DC presentes.
Será realmente o glúten
que causa a SNCG?
É importante notar que, mesmo depois de um ensaio de dupla-ocultação controlado por placebo, não há prova de que o glúten é o responsável pelos
sintomas. Este tipo de ensaios geralmente usa trigo, em vez de glúten
quimicamente purificado. Assim, é certamente possível que os pacientes que se
suponham ter SNCG possam estar a reagir a componentes do trigo que não têm nada
a ver com o glúten. Outros componentes preocupantes do trigo incluem, para além
de outros, estes:
• Amido e outros hidratos de carbono, tais como frutanos (o
mais comum FODMAP contido no trigo);
• Amílase / inibidores de tripsina (ATI) - estas proteínas
de baixo peso molecular encontram-se em muitos cultivares modernos, bem como no
trigo antigo, e descobriu-se que, em ambiente de laboratório, causa inflamação
intestinal. Assim, é concebível, embora para já seja apenas especulação, que
estas são responsáveis por alguns sintomas gastrointestinais relacionadas com
o trigo.
Numa pesquisa realizada em Itália com 486 pacientes com
suspeita de SNCG, o quadro clínico foi caracterizado por sintomas
gastrointestinais e sistémicos combinados. As manifestações gastrointestinais
mais comuns eram inchaço, dor abdominal, diarreia e / ou obstipação, náuseas e
refluxo gastro-esofágico. Entre as manifestações não-gastrointestinais mais
comuns estavam a fadiga, dor de cabeça, dificuldade de raciocínio, dores
musculares e de articulações típicas de fibromialgia, dormência de pernas ou
braços, dermatite ou erupções cutâneas, depressão, ansiedade e anemia. Neste
estudo, 95% dos pacientes relataram sintomas quase todas as vezes que ingeriram
glúten. Noutro estudo, que incluiu 34 pacientes que seguiam a dieta sem glúten
e com Síndrome do Cólon Irritável (SCI), mas sem DC, os sintomas intestinais e
a fadiga reapareceram com mais frequência aquando da reintrodução do glúten do
que no grupo de controlo (68% e 40%, respectivamente). Outras manifestações
clínicas não-intestinais descritas incluem distúrbios neurológicos, tais como déficit
de atenção e hiperactividade, problemas de sono, ataxia cerebelar, transtornos
psiquiátricos, como o autismo, depressão, transtorno bipolar e esquizofrenia,
problemas musculares e doenças auto-imunes, tal como a psoríase.
É comum a SNCG?
Dada a falta de critérios diagnósticos objetivos, é impossível
dizer. Como tal, as estimativas variam amplamente, de 0,6% para uma gritante
percentagem de 50% em alguns sites
populares, mas provavelmente imprecisas. A SNCG parece ser mais prevalente em
mulheres do que os homens, em parentes de primeiro grau de pacientes celíacos,
e em adultos, não em crianças. Na verdade, há apenas evidências limitadas de sua
existência em crianças.
Diagnosticar a SNCG
Apesar das incertezas sobre a definição exata de SNCG, foram
propostos os seguintes critérios diagnósticos:
1 Exclusão de doença celíaca;
2 Exclusão de alergia ao trigo;
3 Início rápido de sintomas intestinais e não-intestinais
após ingestão de alimentos que contém glúten em pacientes com a seguinte
histopatologia: ou mucosa intestinal normal ou "enterite linfocítica"
(definida como um aumento no número de linfócitos intraepiteliais em mucosa
completamente normal).
É essencial descartar a DC antes de rotular um paciente com a
SNCG. Na verdade, os pacientes que começam a dieta isenta de glúten (DIG) antes
de um rastreio diagnóstico adequado para doença celíaca arrisca perder este
diagnóstico ou, pelo menos, atrasá-lo. Os indivíduos que acreditam que estão
afectados por um distúrbio relacionado ao glúten devem ser examinados para
doença celíaca, o que incluirá um exame de sangue e, na maioria dos casos, uma
biópsia intestinal enquanto ainda mantiverem uma dieta com glúten. Tem sido
relatado que cerca de 60% dos pacientes com SNCG têm uma mucosa perfeitamente
normal. Os 40% restantes podem ter "enterite linfocítica", que também
é comum numa série de outras condições para além da doença celíaca: infecções
intestinais, gastrite por H. pylori, o uso de medicamentos anti-inflamatórios
não-esteróides, dor abdominal recorrente, imunodeficiência comum variável, etc.
Ainda assim, a "enterite linfocítica" é uma parte do espectro da DC e
é importante para diferenciar entre esta e a SNCG em pacientes que a apresentam.
Não se identificaram ainda biomarcadores para a SNCG; no
entanto, os anticorpos anti-gliadina positivos, principalmente IgG, têm sido
encontrados entre 25% a 56% dos casos de SNCG. Esta prevalência, apesar de ser
menor do que nos casos de DC (cerca de 85%), é claramente mais elevada do que
na população saudável (até cerca de 10%), mas apenas marginalmente maior da que
é encontrada noutros distúrbios, tais como SCI (20%) ou hepatite auto-imune
(21,5%). Atenção: não está claro se estes anticorpos têm qualquer significado
patogenético e, certamente, dada a sua sobreposição substancial com controlos e
outros transtornos, o seu valor diagnóstico é mínimo.
Não há activos genéticos conhecidos na SNCG: de facto, o
HLA-DQ2 e / ou HLA-DQ8 (genótipos presentes em 100% dos doentes com DC) são
positivos em cerca de 40% dos pacientes com SNCG. Assim, os testes genéticos
para os haplótipos HLA não são úteis para fins de diagnóstico.
Desafio de glúten
para o diagnóstico de SNCG
Porque não há nenhum biomarcador específico para SNCG, o
único padrão confiável para o diagnóstico seria um ensaio de dupla-ocultação controlado
com placebo. No entanto, não há consenso sobre o que constitui um desafio de
glúten adequado, pois as modalidades e quantidade de glúten utilizado têm variado
entre ensaios clínicos. Claramente, existe uma necessidade urgente de
padronizar um protocolo de diagnóstico para os ensaios clínicos. Em consultório,
o diagnóstico é quase sempre feito a partir do relato do paciente e, muitas
vezes, até mesmo sem se ter corretamente excluído a DC. Esta prática representa
um grande obstáculo para o avanço na compreensão desta entidade.
Alergia ao trigo
É possível que, pelo menos, um subconjunto de pacientes com
SNCG possa ter uma alergia alimentar não mediada por IgE. Estudos têm mostrado
que cerca de um terço dos pacientes com SCI melhorou com uma dieta de
eliminação, e piorou durante o ensaio de dupla-ocultação controlado com placebo, com a
introdução de proteínas do trigo e do leite de vaca, o que sugere que uma parte
deles possa sofrer de alergia alimentar não mediada por IgE. A maioria destes
pacientes estudados apresentavam enterite linfocítica na mucosa duodenal.
Na fase inicial da
doença celíaca
Enquanto o diagnóstico da doença celíaca segue um processo bastante
padronizado e está claramente definido, há alturas em que o seu desenvolvimento
precoce não permite que a doença seja detectada, quer por teste de anticorpos séricos
ou pela patologia. No entanto, os sobrenadantes de cultura a partir de biópsias
duodenais ou secções de tecidos de biópsias duodenais podem ser capazes de
detectar os auto-anticorpos altamente específicos em pacientes sintomáticos,
mas com histologia normal e marcadores serológicos negativos para DC. Assim,
uma porção de pacientes diagnosticados com a SNCG podem, na realidade, ser
pacientes com doença celíaca seronegativa e com dano intestinal ainda por
evidenciar.
O efeito Placebo /
Nocebo
O efeito profundo do placebo é bem reconhecido numa
variedade de desordens gastrointestinais funcionais, e mesmo em condições
orgânicas graves, tais como a doença de Crohn, onde cerca de 15% dos pacientes
experimentam melhoria no grupo do placebo. A existência de um fenómeno
relevante de efeito placebo / nocebo tem, de facto, sido relatada em ensaios de dupla-ocultação controlados por placebo em doentes adultos com auto-diagnósticos de
intolerâncias alimentares onde foi sugerida a probabilidade de um efeito placebo
de retirada do glúten. Num estudo sobre pacientes com sintomas de SII- que reivindicavam
sofrer de várias intolerâncias alimentares, apenas 12 dos 32 (37,5%) pacientes que
relatavam tais sintomas melhoraram com uma dieta de eliminação e reagiram aos ensaios de dupla-ocultação controlados por placebo, indicando que quase 2/3 desses pacientes,
de facto, apresentam um típico efeito placebo / nocebo. Assim, é altamente expectável
que uma porção dos pacientes com SNCG, e, sem dúvida, uma porção substancial,
caia nesta categoria. Dada a falta de qualquer marcador de diagnóstico objectivo,
isso parece bastante provável.
Conclusões
Até se saber mais, pode-se questionar se o glúten causa a
SNCG e se esta envolve um mecanismo imuno-mediado. Na ausência de dados robustos,
o termo "sensibilidade" deve ser substituído pelo termo genérico
"intolerância". Assim, o termo enganador "sensibilidade não
celíaca ao glúten" deve ser substituído pelo termo "síndrome de
intolerância ao trigo," de modo a reflectir o papel causador deste cereal
(em vez do glúten), bem como a falta de um mecanismo subjacente específico e
potencial para múltiplas causas dos sintomas.
A dada altura, quando a pesquisa desmontar as várias
componentes da síndrome de intolerância ao trigo e esclarecer a sua patogénese,
a medicina irá abandonar este termo abrangente por outros mais específicos, assim
como evoluiu a síndrome da "diarreia intratável da infância" dos anos
70, outro termo que foi abandonado ao longo do tempo à medida que novas
entidades eram descobertas: doença de inclusão das microvilosidades, enteropatia
por proteína do leite, imunodeficiências, entre outras. Até então, vamos todos
humildemente dar um passo atrás: alterar a terminologia para outra que faça
sentido, deixar de fazer algoritmos de diagnóstico como se estivéssemos a lidar
com uma única entidade, e voltar à prancheta de desenho para projetar estudos
rigorosos, prospectivos, randomizados, de dupla-ocultação controlados por placebo, com
uma abordagem bastante padronizada de modo a responder às muitas e excelentes questões."
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